domingo, julho 23, 2006

100-Ensaio ( II )

Tanto faz
Eu, o Miguel, a Claudia e a Patrícia, e mais alguns amigos, logo que chegou a Primavera e as temperaturas mais amenas, convidativas à prática do campismo, partimos de mochilas às costas, claro, como não podia deixar de ser levamos também as nossas bicicletas.
O comboio que rumava ao Algarve, deslizava na sua marcha monótona e enfadonha.
-Ufa! Estou farto de ir aqui dentro, Neste andar nunca mais chegamos a Faro, resmungou Miguel, já por si impaciente.
-Tem calma, rapaz. Quanto mais ansioso estiveres, mais longa e demorada te parece a viagem -, avisei-o eu.
Quilometro , após quilómetro, chegámos finalmente a Faro. Cavalgámos nas nossas bicicletas em direcção ao parque de campismo. Rapidamente montamos as tendas.
-Passeio de bicicleta...
Depois de termos descansado um pouco, propus que déssemos uma volta de reconhecimento pela zona. O entardecer avizinhava-se e Cláudia e Patrícia preparavam o jantar.
No dia seguinte, acordámos bem dispostos, mas logo a seguir ao pequeno almoço, Miguel queixou-se dumas bruscas dores de cabeça.
-Se vieres que é melhor repousar, hoje não saímos -, sugeri.
-Não são muito fortes, dá para aguentar, sossegou-nos Miguel.
Patrícia é que não se tranquilizou com aquelas palavras e desabafou:
-Cá para mim, a tua saúde não anda muito boa. Ultimamente essas dores de cabeça têm-se tornado bastante frequentes.
-Já te expliquei que é do cansaço -, justificou-se Miguel. Vais ver que no final destas curtas férias as dores passarão.
-Já consultaste algum médico ? -, indaguei.
-Não, respondeu ele
-Mas deves fazê-lo. Mais vale prevenir que remediar -, aconselhei-o eu.
E, nessa radiosa manhã, tal como fora combinado, fomos à descoberta. As nossas bicicletas seguiam numa fila, que era fechada por mim. A dado passo da nossa passeata, apercebi-me que Miguel ia com uma pedalada incerta. Abeirei-me dele e perguntei:
-Não te sentes bem ?
-Não. Estou muito fatigado, respondeu.
Não tive tempo de lhe ordenar que parasse. Nesse instante, Miguel inclinou-se excessivamente e a bicicleta resvalou para a valeta. Como a queda foi um pouco aparatosa, achamos prudente chamar a ambulância para o conduzir à urgência do hospital.
Enquanto Cláudia e Patrícia regressavam ao parque, eu acompanhei Miguel.
-Ainda te sentes cansado ? -, inquiri.
-Sim -, respondeu na sua voz fraca
Eu estava preocupado. Éramos colegas de turma e o ano lectivo não estava a ser muito puxado. A maioria das disciplinas era agradável e as matérias eram acessíveis. Não podíamos, poi, encontrar aqui as razões para a fadiga do Miguel.
E realmente havia motivos para me preocupar. Após uma longa espera por alguma informação concreta, o médico de serviço comunicou-me:
-Estivemos a observar o seu amigo.
-E então ? – era grande a minha expectativa.
-Terá de ficar internado, respondeu o médico.
-Tive nesse momento um sobressalto.
-É grave ?
-Não sabemos ao certo qual o seu estado de saúde. Vamos fazer-lhe as análises necessárias e alguns outros exames.
Nas tendas pairava um ar pesado, fruto da tremenda tristeza que nos ia na alma. Só quando Miguel voltasse para o nosso convívio, teríamos sossego.
Efectivamente, oito dias depois, Miguel teve alta, mas vinha triste, pesaroso. Trazia um semblante carregado e sombrio. Notávamos perfeitamente que se esforçava por nos ocultar a imensa amargura que o dominava.
- Se sois meus amigos, não me façais perguntas -, disse.
-Mas estamos inquietos com a tua melancolia. Assusta-nos essa tua apatia. É como se te estivesses a afastar de tudo e de nós também.
Miguel, levantou-se e, num silêncio que nos sufocava, retirou-se para a tenda, de onde saiu volvidos alguns minutos.
-Se não se importam, eu vou dar uma volta a pé, sozinho.
E Miguel afastou-se.
-Não estou a gostar nada disto -, lamentou-se Patrícia. Miguel nunca havia apreciado andar só.
De facto aquelas atitudes também me intrigavam. O que é que Miguel escondia por detrás daquele mistério?.
Não tardou muito que Patrícia surgisse, com os olhos rasos de água. Entregou-me um papel, escrito pelo amigo e, de imediato desatou a chorar compulsivamente.
-Queridos Amigos, esta foi a melhor forma que encontrei para Vos explicar a profunda angústia que se abateu sobre mim. Assim , não serei forçado a assistir à Vossa compaixão, nem Vós tereis de arranjar desculpas atrás de desculpas, para fugirem de mim. Durante o meu recente internamento, fizeram diversas análises e contra-análises, e a verdade nua e crua é que… sou portador do vírus da Sida. Agora, Adeus, por favor não me procureis.
Mal terminei de ler aquelas palavras, ordenei:
-Peguemos nas nossas bicicletas e vamos em busca de Miguel. Não deve ter ido para muito longe.
Rapidamente distribuímos os percursos que cada um seguiria,
Não foi muito difícil para Patrícia descobrir o paradeiro de Miguel. Avistou-o, solitário, de braços e ombros descaídos, sentado num pequeno muro, com o olhar fitado no mar infinito.
Patrícia acercou-se dele, passou-lhe afectuosamente a mão no ombro e beijou-lhe carinhosamente os longos cabelos negros. Por fim sussurrou:
-Vem comigo.
Miguel nem se mexeu, Ela continuou:
-Preciso de Ti.
Miguel volveu então o olhar para Patrícia e desabafou:
-Para que queres um Amigo que vai morrer?
-Um dia todos morreremos -, ela retorquiu.
-Porém, a doença condenou-me à morte prematuramente, disse Miguel.
-Mesmo que morresses já amanhã, tinhas o direito de continuar a ser amado enquanto vivesses.
-E tu ? -, disse Miguel -, Já pensaste em ti ? Não quero que os meus amigos venham a sofrer mais. Não será justo que se sacrifiquem assim por mim.
-Contrapôs Patrícia -, O meu e o nosso sofrimento será bem maior se teimares em recusar o apoio dos teus amigos. -, Injusto é que queiras impedir-nos de estarmos contigo.
…/…
Miguel, não tinha mais forças para lutar e aceitar os apelos daqueles amigos que tanto o amavam que lhe queriam tanto, mas, também sentia que não podia renunciar àquela imensa partilha de carinho e apoio que lhe estava a ser oferecido, gratuitamente…
…/…
É assim, um tempo de lazer e de passeios de bicicleta , marcados no tempo, onde cada sentimento pelo próximo se mantém vivo em cada um de nós, numa saudade imensa, em tua memória Miguel, meu Amigo…

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